
Natal de ontem que marca os natais de hoje...
Nunca fui muito de olhar para trás embora o ontem tenha sido um tempo de felicidade e de profundos afectos e bênçãos.
Há datas exigentes que nos sugerem que paremos a caminhada, já longa, para saborear os caminhos percorridos.
Há uma “saudade“ alegre que me invade sempre que me revejo, lá longe, numa família, onde nunca faltou o pão e onde sempre a abundância dos afectos e ternuras inundaram a minha meninice e adolescência.
Foi aí que aprendi a ser feliz com pouco, muito pouco.
Como todo eu vibro e me emociono recordando as noites de Natal, tão alegres e profundas. Sentados no chão da velha cozinha, nós, os “infantes“, rodeávamos um grande e redondo prato e, aí, degustávamos as iguarias natalícias onde, nessa ceia, nunca faltava o saboroso bacalhau de cura amarela, bacalhau inglês, de cujas lascas ainda hoje sinto o sabor tão característico que me tem acompanhado ao longo dos anos.
Mas fora essa maravilhosa extravagância tudo era muito simples e frugal.
Após a celebração da ceia comunitária na pequena cozinha, rodeando o grande prato, como adorava ouvir as histórias dos mais velhos, sentados à mesa.
Foram nessas e muitas outras noites que saboreei o conversar tão eloquente do meu velho avô, extraordinário contador de histórias:
Que não muitos anos antes, na mesa lá da casa, o único com direito a uma sardinha inteira era ele. Todos os outros, mulheres e filhos, comiam meia sardinha…
Que ele, carpinteiro de profissão, partia a pé, sempre a pé, nas baixas madrugadas de todas as segundas-feiras para o Porto, local do emprego, levando numa sacola alguns enchidos e uma grande broa, um pouco azeda, para durar toda a semana e, de lá voltava, já o Sábado era quase Domingo.
E foi nessa assumida e difícil vida que amadureceram as personalidades fortes dos meus avós e pais.
Eram tão vividas essas histórias que marcaram sulcos indeléveis na minha memória que perduram, límpidas, e me acompanharam, com emoção, até hoje.
E foi nesse ambiente simples, onde nunca faltou o necessário, e sempre sobrou, abundantemente, a solidariedade e a partilha, que nasci e fui educado.
Esqueci tantas letras e leituras dos meus livros, esqueci tantos números e contas da matemática, esqueci tantas datas da nossa história e dos nossos Reis, esqueci o nome de tantos afluentes e rios, das estações dos caminhos de ferro da geografia, esqueci tantas tristezas que, de certeza, também as houve, mas nunca esqueci o amor e o carinho com que fui muito amado e acarinhado.
TUDO FOI MUITO BOM apetece-me dizer, como o fez o nosso Bom Deus Criador, quando, entusiasmado, contemplou a maravilhosa Obra que realizara, após os sete dias da Criação.
E, hoje aqui estou, nos meus setenta e seis anos, rodeado ainda de tantos afectos, de tantas ternuras, de tantos mimos que esta minha família não se cansa de me dedicar.
Como posso ficar insensível perante esta super abundância ?
Como posso não agradecer, todos os dias, a vida, a saúde, as minhas queridas mulheres e genros, o meu neto, nova e actual visita do Menino de há dois mil anos, nascido em Belém… É um suplemento de vida, de esperança, de felicidade que me fará renascer neste novo Natal que se aproxima.
Que direito me assiste para não ser um homem de esperança?
Já ouço os críticos murmúrios dos que até aqui me seguiram: “Ora assim, era o que faltava que andasse, aí pelas esquinas, a carpir tristezas e pessimismos“…
Pois é… concedo que até poderiam ter razão. Mas, há sempre uma mas, nas nossas vidas.
É que eu nunca fui uma ave rara que andou, ao longo de tantos anos, a planar por esses céus cheios de sol e de azul.
A minha vida não foi nada fácil embora, se pudesse, não resistiria a recomeçar tudo de novo.
A dureza, as incertezas, o sofrimento foram meus irmãos que me acompanharam, durante muitos anos. O desânimo, a tristeza, as dúvidas e até alguma agressividade, bateram, muitas vezes, à minha porta e quiseram entrar e entraram na minha casa. Não se baralhem…
Eu próprio me pergunto, com frequência, porquê esta mania de ser feliz, de ter sempre esperança e acreditar que o amanhã vai ser luminoso para mim, para os meus e para o meu país ? Durante muitos anos este foi um enigma, um labirinto quase sem saídas.
Já há muito que descobri que a minha vida está unida por um grande Arco-Iris que nasce, lá longe, na minha meninice e adolescência vivida na minha primitiva família e se põe ali, quando reencontro uma outra família, onde presidia, já não uma mãe e um pai extremosos, mas uma outra mulher que me fez renascer para os afectos e para a esperança. Tudo o resto veio, depois, por acréscimo. E o meu Arco-Iris, luminoso e colorido, uniu e une as duas famílias. As raízes da de ontem foram transplantadas para a de hoje.
Ontem, como hoje, nunca nos faltou o necessário e, continua, igualmente, a sobrar a solidariedade, a partilha e, acima de tudo, um amor que é mais forte, mais forte do que a morte …
Natais de ontem, obrigado pelas marcas profundas presentes do Natal de hoje…
É... Alberto Correia, 14 Dez.